segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Gramsci e a escola unitária

 


                                                                                                    * Especial para   
                                                                                                   Gramsci e o Brasil*

                                                                                     
                                                                                     Marco Aurélio Nogueira   
             
Não há, seguramente, nos dias de hoje, questão mais estratégica e, por isso mesmo, mais polêmica e apaixonante, do que a da escola. Ela nos angustia e nos confunde, tanto porque somos bombardeados a todo momento pela idéia de que a educação é a senha de acesso ao futuro, quanto porque estamos muito insatisfeitos com a escola que temos. Ficamos incomodados porque queremos nos convencer da importância decisiva da escola e porque nos desiludimos com a escola realmente existente.
Quem já não se pôs a questão, sobretudo entre as famílias que se deparam com a necessidade de escolher a próxima escola de seus filhos? Quem, entre os educadores, já não se viu apostando nas possibilidades de uma renovação nos métodos de gestão escolar que compensasse as falhas do sistema educacional e “salvasse” a escola, recuperando-a plenamente aos olhos da comunidade? Quem já não se surpreendeu divagando sobre a necessária reposição da escola, nestes tempos que parecem naturalizar a crise da escola realmente existente em nome de uma ideologia que hipervaloriza a educação escolar como caminho mais adequado para o êxito profissional?
É um paradoxo: tudo está difícil no campo da educação, mas é impossível visualizar saídas que não passem pela escola. Valorizamos a escola que não temos - a escola em si - por convicção cultural, mas também porque a sociedade informatizada que se anuncia como “sociedade inteligente” sancionou a educação como ferramenta do sucesso e plataforma para uma efetiva reforma cultural. Criticamos a escola que temos porque ela não parece reunir condições de enfrentar esta época de transição, paradoxos e incertezas. Porque é o resultado vivo de muitas políticas casuísticas e de uma certa perda da capacidade coletiva de se empenhar ativamente pela escola. Duvidamos da escola que temos porque ela é hoje um campo de confusões e expectativas mal-dimensionadas, seja por parte de professores e alunos, seja por parte dos pais, que esperam tudo dela, até mesmo uma oferta de “educação” que deveria decorrer da própria dinâmica familiar.
Podemos criticar a escola realmente existente, mas temos excelentes motivos para dedicar a ela o melhor de nossos esforços e convertê-la numa causa ampla, generosa, democrática. Se soubermos partir da escola que está aí, em vez de descartá-la como verdadeiro espelho embaçado do projeto hegemônico das classes dominantes, se soubermos escapar definitivamente da idéia de que uma boa escola - uma escola de qualidade, democrática, de massas, universal, pública e gratuita, ou seja, uma escola republicana - só virá depois que tivermos uma boa sociedade, certamente teremos como reformar a escola.
É este, com boa dose de liberdade, o ponto de partida do instigante trabalho que o leitor lerá a seguir. Tendo a escola e os problemas educacionais inseridos em sua corrente sanguínea, incorporados como razão de ser intelectual e causa política, a professora Rosemary Dore Soares nos convida a percorrer os complexos caminhos da história intelectual da escola sob o capitalismo realizado. Leva-nos a acompanhar a discussão que filósofos, pensadores e pedagogos de diferentes nacionalidades e formações travaram sobre a escola, sobre seus modelos organizacionais, seus métodos de ensino, seu sentido e sua perspectiva. Oferece-nos um panorama abrangente e elucidativo, com o qual aprendemos e crescemos.
Na base deste bem-sucedido esforço, pulsa um diálogo: com Antonio Gramsci, talvez o marxista “clássico” que mais longe levou a reflexão sobre a escola. Não se trata, pois, de mera preferência subjetiva. Rosemary Soares parte de Gramsci porque sabe que, ali, nas milhares de páginas nem sempre linearmente dispostas dos Cadernos do cárcere, escritos entre 1929 e 1935, repousa uma vigorosa reflexão sobre a escola como tal e vis-à-vis o Estado, a política, a sociedade civil (1).

Gramsci não é um pensador qualquer, destes que podem ser abordados com facilidade. Não é à toa que a literatura sobre ele é caudalosa e abriga as mais diferentes interpretações. Gramsci não viveu fora da disputa e seu legado jamais de dissociou da disputa, da controvérsia. Trata-se de um autor eminentemente polêmico, até mesmo porque sua obra tem dimensões “enciclopédicas” e está toda aberta para a política. Como se não bastasse, Gramsci se popularizou muito e passou a ser usado de modo muitas vezes indiscriminado, leviano, simplificado. Ciente do fato, Rosemary Soares reconstrói a concepção gramsciana como um todo, tanto para estabelecer para si mesmo uma plataforma de apoio, quanto para dar a seus leitores um parâmetro para a discussão. O resultado não poderia ser melhor.

Rosemary Soares procede a uma vigorosa leitura de Gramsci. Deseja “acompanhar seu percurso teórico”, para explorar ao máximo sua originalidade e reter sua contribuição específica, centrada num esforço descomunal para estabelecer novos critérios com que pensar a realidade econômica, política e social da sua época. Gramsci queria entender melhor uma realidade que ele via como mais forte do que os esquemas teóricos que então prevaleciam. Só assim imaginava ser possível formular uma estratégia viável de luta para os trabalhadores. Gramsci fará isso repondo e inovando a dialética que vinha de Hegel e Marx. Sua obra será toda construída à base de nexos, articulações, unidades e distinções, processos e contradições, envolvendo os diversos aspectos da estrutura e da superestrutura, da economia e da política, do Estado e da sociedade civil. Gramsci descobrirá que o vir-a-ser do capitalismo produzira modificações importantes tanto na economia e na sociedade quanto na esfera do Estado. Refletindo o que se passava na estrutura social, o Estado se “socializara” e não poderia mais ser compreendido apenas como expressão da sociedade política: em seu interior, instalara-se um espaço específico, a sociedade civil, lugar dos interesses organizados e das lutas pela hegemonia. O Estado, em suma, alargara-se, passando a ceder sempre mais espaço aos movimentos e às ações “civis”, societais. Exatamente por isso, o campo das subjetividades, das idéias e da cultura - portanto, dos sujeitos, dos intelectuais, da escola, da organização da cultura - tornara-se absolutamente decisivo.
Seguindo as sugestões de Gramsci, o eixo em torno do qual Rosemary Dore Soares organiza sua exposição é fornecido pela idéia da “escola unitária”, proposta educacional construída tendo como base o processo vivo que levou, num dos movimentos empreendidos pela burguesia para reforçar e proteger sua hegemonia, à constituição da “escola nova”, a “escola ativa”, na qual haveria maior aproximação professor-aluno e os problemas da vida “prática” (mundo do trabalho) passariam a ser firmemente considerados. A “escola unitária” de Gramsci seria o desfecho de todo o processo de crise da velha escola - crise esta determinada pela agonia da sociedade e da cultura tradicionais, pré-industriais, com o que a escola se separou da vida, tornando-se “desinteressada” demais ou “especializada” demais. A crise da escola, para Gramsci, era uma “progressiva degenerescência”: as escolas de tipo profissional, isto é, preocupadas em satisfazer interesses práticos imediatos, passavam a predominar sobre a escola formativa, imediatamente desinteressada, invertendo a estrutura que prevalecia anteriormente. O novo tipo de escola, porém, ainda que tivesse muitos elementos progressistas, não era democrático e acabava por se realizar como um fator adicional de perpetuação e cristalização das diferenças sociais. Para destruir tal armadilha, seria necessário, nas palavras de Gramsci, “não multiplicar e hierarquizar os tipos de escola profissional, mas criar um tipo único de escola preparatória (primária-média) que conduza o jovem até os umbrais da escolha profissional, formando-o, durante este meio tempo, como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige” (p. 49). Em outros termos, seria necessário fundar a “escola unitária”, a “escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual” (p. 33).

Como observa com precisão Rosemary Soares, a construção da “escola unitária” não está condicionada à derrocada do Estado burguês, pois se trata de um processo de superação da escola existente: ele decorre, acima de tudo, do desenvolvimento dos elementos racionais da “escola nova” e da luta contra seus aspectos conservadores, elitistas, cristalizadores das divisões sociais, num processo em que a construção do “novo” se afirma no bojo mesmo da luta pela destruição do “velho”. É por isso que Gramsci afirmava que “o advento da escola unitária significa o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas na escola, mas em toda a vida social. O princípio unitário, por isso, irá se refletir em todos os organismos de cultura, transformando-os e emprestando-lhes um novo conteúdo” (p. 40). Em vez de se seguir ao advento de uma nova sociedade, a “escola unitária” torna-se ela mesma instrumento de edificação desta sociedade: um elemento a mais para possibilitar às classes subalternas a aquisição de recursos decisivos para romper com a subalternidade e assumir um maior protagonismo social.
É com esta bagagem que Rosemary Soares põe-se a campo para polemizar com as concepções que, retomando alguns dos temas caros, por exemplo, a Ivan Illich ou à perspectiva reprodutivista, “terminam por descartar a escola que temos no presente, erguida historicamente em meios aos embates sociais, políticos e ideológicos, verdadeiro patrimônio institucional, cultural e político conquistado pelas massas”. Tais concepções, “em lugar de quererem transformar essa escola que aí está, partindo dela mesma, projetam num passado distante ou num futuro socialista o modelo ideal da escola popular”. Ficam sem muitas condições de projetar uma efetiva reforma da escola.
A apaixonada defesa que Rosemary Soares faz da escola existente - “a única que conhecemos, resultante das amplas lutas dos movimentos sociais” - é, no fundo, a defesa da idéia de que temos uma base para reformar a escola. Sugere-nos isso que não precisamos de projetos mirabolantes dedicados a fundar uma escola toda nova, como se a que existe fosse pura inutilidade e não pudesse ser transformada. Sugere-nos, também, que não basta simplesmente querer outra escola, como se ela estivesse ao alcance da mão, independentemente de condições concretas. Sugere-nos, enfim, que a reforma da escola não é algo simples, passível de ser equacionado tecnocraticamente, à base de ajustes orçamentários, reformulações técnicas ou mudanças administrativas, como se a intervenção num terreno tão vital e tão colado à realidade viva das massas, pudesse ser experimentada sem política ou com uma política distante da democracia.

No Brasil, antes de tudo, precisamos reformar a escola e o sistema educacional, tanto quanto precisamos de novas políticas para a educação. Estamos convencidos de que devemos dar mais espaço na escola para professores e alunos, estimular o controle democrático da escola pela comunidade, melhorar a gestão escolar, tornar a escola - e aqui particularmente a escola pública - um valor nacional, brigar para modificar o peso relativo da política educacional diante das demais políticas governamentais.

Mas ainda não estabelecemos com rigor o que entendemos por reforma da escola. Aceitamos com facilidade a idéia de reforma hoje em circulação: providências dedicadas a reduzir custos e ajustar estruturas, não a modificar sentidos e significados. Tendemos a achar que nas escolas faltam “administradores”, gerentes competentes para manusear cifras, modelos e tecnologias destinadas a “otimizar” o ensino, as funções docentes, os currículos. Os próprios pais querem que a escola “administre” seus filhos, dando a eles disciplina e recursos para a ascensão profissional.

Chegamos a admitir que talvez o mercado possua mesmo o que a ideologia da época aprega: racionalidade, eficiência, agilidade, até mesmo “justiça distributiva”. Como a própria educação tornou-se ela também uma mercadoria, tendemos a achar que a escola deve ser administrada com métodos empresariais. Quantos não se deixam atrair, por exemplo, pelas escolas que têm bom marketing, ocupam lugar na mídia e “garantem” formação competitiva?
Porque somos filhos do tempo, achamos que não podemos esperar muito mais coisas do Estado, que a hora é não só do mercado, mas também das organizações não-governamentais e do terceiro setor. Parecemos sem forças para manter viva a velha utopia da escola republicana, da escola laica, pluralista, democrática, da escola de todos.
Se quisermos, porém, construir uma escola para o futuro, devemos ir além da cultura da época. É inegável que temos problemas de gestão, mas eles precisam ser pensados e enfrentados em sua justa dimensão. Os grandes problemas da escola e da educação são de outro tipo e de outra envergadura. Dependem, para ser solucionados, de pessoas que mobilizem recursos humanos, políticos, sociais e ideológicos para uma transformação substantiva.

Dependem de livros como este, que o leitor certamente apreciará. Nele, a escola ocupa o lugar de destaque que merece ter. Tratada com generosidade, paixão e rigor conceitual, a escola que Rosemary Dore Soares nos apresenta é um projeto todo aberto para o futuro, vinculado à democracia e em permanente diálogo com as grandes maiorias. Justamente por isso, está intimamente associada à proliferação daquele novo tipo de intelectual cujo modo de ser Gramsci dizia não mais consistir na “eloqüência”, mas numa “inserção ativa na vida prática” - um construtor, um organizador, um persuasor permanente, que, da técnica-trabalho, chega à técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual permanece “especialista” e não se torna “dirigente”, isto é, especialista mais político.

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Marco Aurélio Nogueira é professor de Teoria Política da Unesp e pesquisador da Fundap. Originalmente publicado como prefácio ao livro de Rosemary Dore Soares, Gramsci, o Estado e a escola (Ijuí, Ed. Unijuí, 2000, 488 p.), este texto está aqui reproduzido mediante expressa autorização do autor.
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Nota
(1) Depois de terem sido divulgados de modo fragmentado e incompleto dos anos 60 em diante, os Cadernos do Cárcere de Gramsci estão hoje em curso de publicação no Brasil, em edição de Carlos Nelson Coutinho (com a colaboração de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira), preparada para a Editora Civilização Brasileira. Os textos em que Gramsci analisa de modo mais concentrado os problemas da escola integram o volume 2: “Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo” (Cadernos do cárcere, vol. 2, tradução de Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000).

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